quinta-feira, 30 de abril de 2009

LITERATURA

Texto publicado no JORNAL DE LETRAS em 3 de Março de 2004.

LITERATURA POLICIAL


Mário Soares, Jorge Sampaio, o que podem ter em comum para além das coisas públicas que todos lhes conhecemos ?
Pois bem, ambos se confessaram e assumiram como leitores atentos de livros policiais!
Com um pouco de ginástica mental, podemos imaginar Mário Soares como admirador de um Maigret desengonçado e pesadão, ou Jorge Sampaio a seguir, deliciado, um caso do mais “cabeça de ovo” da História do Policial, o sempre actuante Poirot!
O que faz dos romances policiais uma das leituras mais apreciadas em todo o Mundo e em todas as épocas ? Que sortilégio terá ? Será apenas a sua vertente desafiante da inteligência, ou, mais que isso, um misto de Aventura e Mistério, com uma porção de raciocínio, q.b. ?

Digamos em abono da verdade que nada no Policial foi – ou é – pacífico. A começar pela paternidade, em que se degladiam diversas correntes de opinião, que nos remetem para a Bíblia ou para escritos chineses ou, mais modernamente, para Voltaire ou Dostoievsky. Mais aceite é, no entanto, Edgar Alan Pöe, como o pai do romance policial com características dedutivas, em 1841, com a publicação de “Os Crimes da Rua da Morgue” no “Graham’s Magazine”.
Seja como for, o Policial acaba por carregar um fardo como “casa mal frequentada”, porque nasce de um alcoólico Pöe, prolonga-se e atinge um grau de popularidade inimaginável com um Sherlock Holmes consumidor de cocaína; se implanta e desenvolve em Portugal, tendo como cultores um Fernando Pessoa com problemas alcoolicos ou um Reinaldo Ferreira (Repórter X) morfinómano...

De literatura de cordel, que foi considerada durante longo tempo, até às declarações de um Prémio Nobel da Literatura, José Saramago, de que vai escrever um romance policial, o caminho foi longo e difícil, cá como no resto do mundo.
A uma literatura incipiente, sensacionalista, um tanto aventureira, seguiu-se um período de grande esplendor, usando quase sempre a fórmula de duplas que se tornaram famosas: Monsieur Dupin e o seu amigo desconhecido, de Alan Pöe; Sherlock Holmes e Dr. Watson, de Arthur Conan Doyle; Hercule Poirot e Capitão Hastings, de Agatha Christie.
Outros, muitos outros detectives famosos seguiram o trilho – para não dizermos que imitaram – Dupin e Pöe. Destacamos Ellery Queen, produto de dois primos, Frederick Danny e Manfred Lee; Philo Vance de S. S. Van Dine; Philip Marlowe de Raymond Chandler; Sam Spade de Dashiell Hammett; Hercule Poirot ou Miss Marple de Agatha Christie.

Numa tentativa de sistematização, poderíamos dizer que as três grandes “escolas” policiais trataram os seus mais emblemáticos escritores de forma bastante profissional, apoiada num “marketing” eficiente. A “escola” britânica reune-se em torno de Sherlock e mais tarde de Poirot e Miss Marple; a “escola” franco-belga cerra fileiras em redor de Maigret, inspector e mais tarde Comissário criado por Georges Simenon; a “escola” americana arrisca em Chandler, mais tarde em Ellery Queen e finalmente em Patricia Higsmith que acaba “arrasando” a concorrência com as histórias de Mr. Ripley.
Pelo meio, lutando contra cada um destes centralismos, uma imensidão de autores e detectives procuram o seu espaço, em muitos casos bem merecido.
Sherlock Holmes faz com que em França surja Arsène Lupin, uma criação de Maurice Leblanc, um ladrão muito fino, que depois vai servir de modelo a Simon Templar (Santo), de Leslie Charteris. Pelo meio, Émile Gaboriau faz nascer o Monsieu Lecoq, também em França. Mais tarde, já em 1911, aparece um padre com grandes capacidades dedutivas, Father Brown, uma criação de Gilbert Keith Chesterton.
Nesse mesmo ano, na América, Melville Davisson Post escreve os primeiros contos do Tio Abner, enquanto se vai demonstrando que a “escola” americana não consegue rivalizar minimamente com o que se faz deste lado do Atlântico! E.C. Bentley publica “O Último Caso Trent” e Freeman aparece com “O Osso”, ao mesmo tempo que Earl Derr Biggers faz nascer Charlie Chan, um chinês apaixonado por Confúcio, que o cita a toda a hora. Mas em Inglaterra os consagrados dão cartas, bem secundados por Max Carrados, de Ernest Bramah.
Nos anos 20 do século passado são as mulheres que mais se distinguem, com Agatha Christie e Dorothy Sayers que nos apresenta Lord Peter Wimsey.
Edgar Wallace cria o pequenito e perspicaz Mr. Reeder; Margery Alling oferece-nos Albert Campion; Ellery Queen um detective “caixa de óculos” com o mesmo nome; Dashiell Hammett um modelo de detective particular à sua semelhança, Sam Spade; o americano John Dickson Carr – também Carter Dickson -, especialista de enigmas tipo “quarto fechado” que trata como ninguém, traz-nos o Dr. Gideon Fell; Simenon assume a sua revolta contra os detectives por conta própria e faz nascer o Inspector Maigret, mais tarde Comissário; Rex Stout avança com o oposto de Maigret, um tipo gordíssimo que nunca sai de casa, Nero Wolfe, que conta para tudo com o seu braço direito Archie Goodwin; na América, Erle Stanley Garner cria Perry Mason, um advogado de sucesso.
Os anos 30 são atravessados por todos estes heróis e autores, com altos e baixos. Finalmente pode dizer-se que o romance policial é já tão americano como europeu.
Nos anos 40 assiste-se ao aparecimento de antologias, uma inglesa, a “Line Up” e uma americana, a primeira coordenada por Ellery Queen, que reune, de uma só vez, Hammett, Chandler e Ellery.
Estes terão sido os anos de ouro do romance policial, tal o número e qualidade de autores e personagens, que verdadeiramente desenvolveram a sua actividade ao longo de décadas, renovando sempre as suas propostas e actualizando processos. Tal longevidade, ao invés de criar saturação, produziu um efeito contrário, seduzindo legiões de novos leitores. O velho romance sem sentido, aventureiro e sensacional, era agora respeitado. Cada vez mais catedráticos e homens de letras faziam incursões no mundo do romance policial.
Os novos rumos conduzem-nos a uma indefinição sobre o que poderá vir a ser o Romance Policial do futuro.
O processo criativo que aconteceu nos anos de ouro, ainda não deixou de estender os seus tentáculos e ninguém hoje consegue ignorar Sherlock, Poirot, Ellery ou Maigret, que continuam omnipresentes e apresentados como modelo, apesar das vetustas idades. Novos modelos de violência protagonizados por Mike Hammer de Mickey Spilane ou Lew Archer de Ross Macdonald, ao bom estilo de “olho por olho...” não parecem trilhar o caminho do futuro.
Resta-nos como verdadeiro bálsamo para o espírito, a magnífica obra policial global de Manuel Vásquez Montalbán, escritor catalão multifacetado que é já um modelo da nova Literatura Policial.

Por cá, o Policial segue as tendências, a alguma distância, claro. Colecções como a Vampiro, Xis, Romano Torres e outras, traziam tudo o que de melhor se publicava no mundo, criando em muitos leitores o desejo de escreverem os seus romances. O policial português é rico naquilo que se conhece, já que muitos autores foram obrigados a optar por pseudónimos para poderem publicar as suas obras. Alguns são hoje conhecidos, outros, possivelmente nunca o serão. Um exemplo bem flagrante é o de Mário Domingues, historiador, jornalista, editor e tradutor, que usou qualquer coisa como cerca de 150 pseudónimos, a maioria dos quais desconhecidos hoje em dia, o que o transformou no português que mais romances escreveu e editou!
Aquele que é considerado o pai do romance policial português é Francisco Leite Barros, nascido em Lisboa no ano de 1841 e falecido em 1886. A coincidência de ter nascido no mesmo ano em que Pöe publicava a primeira novela policial, parece ter influenciado este autor, que escreveu “O Incendiário da Patriarcal”, “O Crime de Mata Lobos”, “O Crime do Corregedor” e “As Aventuras do Homem Pardo”.
Nome fundamental do policial português é o de António Andrade Albuquerque, que assina as suas obras com o pseudónimo de Dick Haskins e que é o autor português mais editado no estrangeiro, com obras traduzidas em dezenas de países e passadas para o cinema.
Também Reinaldo Ferreira merece destaque com os pseudónimos Repórter X e Repórter Kiá. Com uma obra extensa, deixou marcas no policial português, nas décadas de 20 e 30, até ao seu falecimento em 1935.
Roussado Pinto é outro autor importante, não só pela extensa lista de cerca de 75 pseudónimos que usou até à sua morte, mas também pelo modo como organizou antologias policiais de boa qualidade. Ross Pynn é o seu pseudónimo mais conhecido.
Outros nomes varreram o panorama policial, de que destacamos:
Adolfo Coelho com o pseudónimo J. Stew, nos anos 20; Américo Faria como Adam Fulton e Ans. Shouldmarke; António Carlos Pereira da Silva, como Simon Ganett ou Barney Kilbane; Dinis Machado, como Dennis Mc Shade, tendo como personagem Peter Maynard; Fernando Luso Soares com os seus personagens Inspector Boaventura e Dr. Castro; Fernando Pessoa que criou os personagens Dr. Abílio Fernandes Quaresma, Tio Porco e Chefe Guedes; Francisco Valério Almeida Azevedo, com o pseudónimo de W. Strong Ross e personagem Inspector Ryan; Gentil Marques, com os pseudónimos de Charles Berry, James Stron (criador de Rangú), Marcel Damar, Herbert Gibbons; D. G. Richter e muitos outros; Guedes de Amorim, como Edgar Powel; José da Natividade Gaspar, como Sam Brown ou J. Fergusson Knight; Luís Campos, como Frank Gold; Mariália Marques, como John S. Falk, Hugh Mc Benett ou Ossman Matzyk; Mascarenhas Barreto, como Van Der Bart.

Na moderna Literatura Policial Portuguesa vivem-se momentos de alguma acalmia. Algumas felizes incursões de autores consagrados, como José Cardoso Pires em “Balada da Praia dos Cães”, Agustina Bessa Luís em “Aquário e Sagitário”, Clara Pinto Correia em “Adeus Princesa” ou Francisco José Viegas, em “As Duas Águas do Mar”, não conseguem agitar o meio, que continua placidamente a viver de alguns novos valores como Maria do Céu Carvalho, Manuel Grilo, Miguel Miranda, Ana Teresa Pereira ou Henrique Nicolau.
Sem conseguir afirmar-se como uma “escola”, a verdade é que o Policial Português sempre conseguiu encontrar o seu espaço, com recurso a pseudónimos estrangeiros ou não.
E mesmo fora do movimento editorial, há mais de onze anos que milhares de pessoas escrevem sobre o policial, desafios e suas propostas de resolução, nas páginas da edição dominical do Público, que vem funcionando como um verdadeiro “ponto de encontro” dos amantes do Policial.


Luis Pessoa

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