sexta-feira, 13 de abril de 2012

POLICIÁRIO, UMA FERRAMENTA PARA A VIDA

TEXTO DA CONFERÊNCIA NA UNIVERSIDADE DE ÉVORA, NO DIA 29 DE MARÇO DE 2012







Boa tarde.

Antes de tudo o mais quero agradecer o convite que me foi endereçado pelo professor João Nabais para estar aqui presente e poder falar um pouco sobre Policiário e também, claro, agradecer a presença de todos.







[Em fundo, como podem ver, estão a passar algumas fotos que pretendem ilustrar um pouco o que foi e é o Policiário, que deve muito a esse senhor de barbas brancas, já falecido, que dava pelo nome de SETE DE ESPADAS, porque entre nós, conhecemo-nos por “nomes de guerra” que adoptamos. Eu sou o Inspector Fidalgo.]



E o meu agradecimento é tanto maior quanto se dá a circunstância de pela primeira vez poder estar perante uma plateia de pessoas da Química, o que é um tanto inusual, uma vez que normalmente são as pessoas do Direito e da Justiça, que mais chamam o Policiário.

Reconheçamos, no entanto, que faz todo o sentido que seja a Química a reivindicar cada vez mais o papel principal no combate ao crime, tal é o desenvolvimento actual da ciência e da técnica na resolução dos casos criminais. O CSI é hoje uma realidade transmitida e ampliada por séries televisivas atractivas e muito dinâmicas, ainda que nem sempre retratem a realidade.
Mas, se a Química é hoje uma componente fundamental para a resolução dos crimes, também não faz mais do que a sua obrigação, porque uma imensa maioria dos crimes cometidos, ditos de sangue (assassínios, agressões, violações, etc.), têm também a sua origem na própria Química (…)

É a “Química” das pessoas, as reacções pessoais que conduzem à grande maioria desses crimes, digamos, circunstanciais, não planeados. Uma palavra dita no momento errado, excessiva, pode despoletar uma reacção fortíssima, desproporcionada, que conduza ao cometimento de um crime. É o vulgar “perdeu a cabeça”… “passou-se”!
Portanto, digamos que uma certa “Química” é causa principal de actos que uma outra “Química” vai resolver…

O tema que escolhi, “Policiário, uma ferramenta para a vida”, pode parecer um pouco pretensioso, arrogante mesmo, mas vou tentar mostrar que nenhum desses conceitos e sentimentos está por detrás da sua escolha.

O termo Policiário foi desenvolvido pelo Sete de Espadas, a partir da designação que foi dada por Fernando Pessoa que em carta escrita ao seu amigo Adolfo Casais Monteiro referia que estava a trabalhar numa novela policiária, supostamente “O Roubo na Quinta das Vinhas”. Esta carta, de 13 de Fevereiro de 1935, foi o ponto de partida para a designação do nosso passatempo.

É bom que fiquemos já cientes que o crime que mais nos interessa não é o que referimos atrás, como circunstancial, como reactivo, como “Químico”, mas sim aquele que é planeado, estruturado por um cérebro o mais brilhante que for possível.
Também é bom que percebamos que a nossa actividade é levada muito a sério por todos nós, ou seja, mesmo tratando-se da decifração de enigmas ficcionados, de forma lúdica, essa decifração obedece a todas as regras de uma investigação real.

Finalmente, nem tudo se passa em redor do crime. É possível e muitas vezes acontece, haver desafios onde a actividade criminal não está presente, por exemplo, pedir-se aos detectives que descubram qual foi a criança que comeu um bolo que não era suposto ser comido, ou qual dos empregados cometeu um erro numa encomenda, ou qual foi o aluno que pregou uma partida a um professor, etc.

Aqui chegados, vamos lá falar da TAL “ferramenta” que nos traz aqui:

Reparem só num pequeno extracto da novela de Fernando Pessoa, já referida, “O Roubo na Quinta das Vinhas”, para termos uma ideia daquilo que a ferramenta Policiário nos pode “ensinar” para a vida:
Diz o Dr. Abílio Quaresma, o investigador de Pessoa, a dado momento:

“Um exemplo: passo por uma rua e vejo um homem caído no passeio. Instintivamente me pergunto: porque é que este homem caiu aqui?
Já aqui vai um erro de raciocínio e, portanto, uma possibilidade de erro de facto. Eu não vi o homem cair ali. Vi-o já caído. Não é, portanto, um facto para mim que o homem caísse ali. O que é um facto para mim é que ele está caído ali (…) Creio ter-lhes mostrado bem como é complicado o que parece tão singelo. É preciso, em qualquer problema, separar cuidadosamente, logo no princípio, os dados e as conclusões…”.
Mais claro, não podia ser…

O Policiário coloca cada participante perante as várias situações possíveis, ou seja, como vítima, como testemunha, como suspeito, como criminoso e como detective. Portanto, o criador do enigma tem que juntar todos os intervenientes, colocar cada qual no seu lugar, estudar e planear a cena onde se desenvolve a acção, deixar os indícios que conduzam à decifração, apontando a um único culpado e ilibando os restantes.
Quer isto dizer que um produtor de enigmas policiários tem que dominar toda a acção, porque não lhe é apresentado um caso, ele tem é que fazer esse caso.

Ao decifrador cabe interpretar os elementos que lhe são fornecidos e chegar a um resultado lógico.
É nesta lógica que reside, em grande parte “a ferramenta”. O policiarista confronta-se, a todo o momento, com a lógica das ilações que vai retirando dos factos que lhe são apresentados, desenvolvendo, portanto, uma cadeia lógica de raciocínio, que vai poder aplicar na sua vida.
Não é por acaso que as pessoas mais capazes de ler, interpretar, encadear logicamente os dados fornecidos, retirando as ilações necessárias, ficam muito mais apetrechados para a sua vida profissional e pessoal, conseguindo dar respostas mais rápidas e certeiras às questões e constrangimentos que surjam.
Aí, o Policiário assume-se como uma ferramenta importante.

Mas há também a vertente de prevenção. Um policiarista entende melhor as situações, ao ficar perante elas, porque aprendeu a lidar diariamente com elas, na ficção. Assim é muito melhor observador, detecta e aponta pormenores fundamentais para a posterior captura do criminoso, sabe o que é essencial que anote na sua memória visual, auditiva e sensorial. É uma testemunha agradável para um investigador.

Há histórias engraçadas, jocosas, muito falaciosas, sobre testemunhas e ilusões, como por exemplo a de um crime que é cometido e há duas testemunhas que juram que viram o criminoso. Quando chega o momento da identificação, os dois apontam um certo indivíduo, sem reservas. Já no julgamento, ambos são taxativos na identificação, mas então aparece um irmão gémeo do suspeito, igualzinho! As testemunhas hesitam, não conseguem apontar qual deles viram no local do crime…
Problema insolúvel? Nem por isso, o juiz ordena a reclusão de ambos e retoma o julgamento duas semanas depois. Nessa audiência, um dos manos aparece gordo e anafado, rosado, respirando saúde, enquanto o outro está enfezado, magríssimo… O juiz não tem dúvidas, manda libertar o gorducho…
A conclusão é simples, “o que não mata, engorda!”
Isto foi apenas uma brincadeira…

Mas uma das facetas mais importantes é aquela que se relaciona com o ensino e a aprendizagem.
Não é tanto para vocês, que já estão no curso que pretendem (mais ou menos, em alguns casos, porque às vezes não se entra no curso escolhido), mas a nível do secundário ou mais baixo ainda, há matérias que manifestamente não atraem as simpatias, sendo um martírio para quem dá essas aulas, como será um martírio para quem tem de as receber.
Aí, o Policiário pode ser a gazua que abra as portas fechadas, mercê da apresentação da matéria sob a forma de enigmas para decifrar, metendo “buchas” aqui e ali, questões a exigirem decifração apenas ou maioritariamente com a ajuda das “células cinzentas”. É na utilização destas que se deve apostar.


Deixem-me contar uma história verdadeira que se passou nos anos 80 do século passado, numa escola problemática da zona de Lisboa, num subúrbio onde se cruzavam alunos de “n” nacionalidades, raças, etnias.
Eram alunos entre os 14 e os 16 anos e o conselho directivo da escola resolveu criar actividades extracurriculares, que decorriam nas tardes em que os alunos não tinham aulas. Fui convidado para ministrar algumas horas e fiquei com uma sala de 20 e tal alunos, completamente desinteressados, em que todos falavam, gritavam uns com os outros e só dois ou três permaneciam calados porque estavam a dormir…
Bom, as primeiras aulas foram surrealistas, porque não me calei nem um bocadinho, embora soubesse que ninguém me ouvia, mas os jovens iam aparecendo.


Quando o tempo ajudou, levei aquela malta para o exterior da sala e começámos a procurar indícios, pequenas coisas interessantes, observando o terreno, apanhando objectos com os cuidados próprios para não haver contaminação. Umas lupas serviram para aumentar o interesse. Umas impressões digitais levantadas de vidros, com ajuda de fita-cola; umas pegadas de que fizemos moldes, para guardar e mais tarde comparar para sabermos a quem pertenciam; calculámos alturas a partir do tamanho de pegadas, vimos e comparámos objectos no microscópio etc., etc. ...

Curiosamente, passado algumas semanas já não eram 20 e tal os alunos, mas mais de 40, a quererem experimentar…
Distribui, então, pequenos textos com problemas policiários muito simples e as respostas foram excelentes. Quando as férias da Páscoa se aproximaram, dei livros policiais a todos e muitos leram-nos e discutimos os crimes e alguns até tinham ideias diferentes sobre o fim da história, outros mostravam-se zangados por serem “enganados” pelo autor…
Durante aquelas horas, a atenção dos alunos era excelente, traziam representações de crimes e a sala assistia e tentava decifrá-los e no fim era grande a discussão, em que muitas vezes o autor não saia lá muito bem…

Os resultados escolares subiram bastante, porque passou a ser “quase” condição necessária para frequentar o Policiário que houvesse boas notas nas disciplinas curriculares e os alunos pediam ajuda nos estudos.
Os próprios professores das cadeiras ficaram espantados com a alteração produzida.

Não retiro, naturalmente, qualquer ilação científica, porque não foi uma experiência estudada, estruturada, foi um bocado ao sabor da corrente, mas que se registaram grandes avanços naqueles jovens, isso foi inegável.
Claro que as resistências foram muitas, houve queixas por estarmos a “incentivar a violência e o crime” nas “criancinhas” e ainda antes do final do ano, a pretexto de mais uma alteração curricular qualquer, foram suspensas aquelas aulas.

Alguns desses jovens, hoje bem trintões, decifram enigmas na secção de Policiário que aos domingos oriento no PÚBLICO vai para 20 anos, que se completam no próximo dia 1 de Julho.

Em suma, o Policiário é uma actividade lúdica aberta a todos, que nos permite fabricar os nossos crimes, os nossos desafios, dar vida (e morte também!) aos personagens que queremos, nas situações pretendidas. Mas também nos permite decifrar os enigmas propostos, aplicando a leitura, a interpretação, a análise dos textos, etc.
E como usamos, na feitura e decifração, todos os instrumentos reais de uma investigação, bem podemos dizer que somos detectives a sério, agimos como eles e ainda acrescentamos o domínio da escrita, que nós necessitamos e eles nem por isso.

Permitam-me, apenas, que vos dê dois exemplos daquilo que é o Policiário.

Vejam esta cena: Um indivíduo muito rico (nós gostamos muito de vítimas ricas porque ficamos logo com um motivo para o crime) não tem filhos, sofre de uma doença terrível e resolve chamar os sobrinhos que são seus herdeiros e diz-lhes: A minha fortuna vai toda para aquele que acabar com o meu sofrimento. Este papel diz isso mesmo e fica aqui guardado para que a minha fortuna seja entregue a quem acabar com o meu sofrimento…
Claro que no dia a seguir o ricaço já era e foi caricato ver os sobrinhos um a um irem à polícia dizer que mataram o tio e explicar como o fizeram. No texto davam-se os elementos que permitiam concluir que um deles era o responsável e no fim perguntava-se: Quem herdou a fortuna?
Nessa pergunta estava toda a diferença. Não se perguntava quem matou o tio, mas quem herdou. E pela lei portuguesa, quem atenta contra a vida de alguém, não pode herdar desse alguém! O que matou e que parecia que ia ficar rico, foi o único que não herdou!

Outro problema tratava de um crime cometido numa aldeia onde não havia luz nocturna e às tantas, um personagem vem dizer que assistiu ao crime, quando passou no local, aproveitando o momento em que o criminoso se voltou e o luar permitiu ver-lhe as feições e reconhecê-lo.
Todo o texto era perfeito, sem erros nem pistas de nenhuma espécie. Era claro como a água. No título é que estava a solução do problema: Na Noite do Eclipse!
Eclipse à noite, apenas da Lua e para que ocorra, esta tem que estar em fase de Lua Nova. Não há luar!

Estes dois casos são o retrato daquilo que o Policiário nos pode surpreender a cada passo e que espero vos possa aguçar a curiosidade para virem “espreitar” o que fazemos e o que nos atrai tanto.

Muito obrigado pela vossa atenção. Foi um prazer estar convosco.

Boa Química e boas deduções!
 lp

7 comentários:

Anónimo disse...

Meu Caro
Seria interessante que muitos dos participantes neste evento viessem muito brevemente a juntar-se a todos nós.
Eu sempre fui defensor de que o Policiário deveria entrar nas escolas para, a partir do interesse dos alunos pela nossa actividade, eles desenvolvessem as suas aptidões para o estudo das diversas matérias. Quase todas elas, para não dizer todas, poderiam virem a ser benificiadas pelo aproveitamento dos alunos.
Sobre isto muito se poderia dizer, mas creio que este não é o espaço apropriado,nem eu sou farto em erudição para o expor.
Rip Kirby

Anónimo disse...

MUITÍSSIMO BOM! parabéns...
Honraste o nosso desporto mental. Justificaste a razão da sua manutenção..
Um abraço

Anónimo disse...

Parabéns pela intervenção, que foi muito boa. Talvez alguns daqueles jovens venham experimentar. Parabéns também para os organizadores da Universidade de Évora que foram inovadores e acertaram no convite ao Luís Pessoa.
Muito bem

Deco

luis pessoa disse...

Apenas referir que este texto foi a base da intervenção. Foi possível fazer uma explicação mais pormenorizada e houve tempo para falarmos de M. Constantino e dos seus problemas e estudos; dos grandes do Policiário actuais e passados, na sequência das fotos que iam passando em fundo; das secções e dos blogues; enfim, fizemos a divulgação possível da nossa actividade e abrimos uma porta para iniciativas futuras, que ficámos de pensar.

Anónimo disse...

Caro Luis
No comentário que aqui inseri, hoje pela manhã, eu não o felicitei pela sua intervenção o que faço agora.
Essa falha não foi devida a esquecimento ou porque eu entendesse que você não merecia essas felicitações. O que aconteceu foi o que muitas vezes acontece nas nossas soluções. Deixamo-nos embalar pelas nossas ideias primitivas e acabamos esquecendo as ideias iniciais.
Eu disse que não foi esquecimento da minha perte a omissão das felicitações mas no fim acabo referindo um esquecimento mas você certamente que entenderá que cada uma das vezes dessa citação está em contextos diferentes.
Um abraço e novas iniciativas semelhantes se for possível
Rip Kirby

Anónimo disse...

Muito bom o Policiário entrar na Universidade é um reconhecimento da sua validade. Fez muito bem e gostei da sua intervenção

I Alegria

Artur Costa disse...

Não resisti a partilhar a conferência n'O Linguado (http://olinguado.blogspot.pt/2012/04/policiario-uma-ferramenta-para-vida.html).
E lanço a suspeita: seria o Sete de Espadas, na realidade, um heterónimo do Poeta?
Parabéns por ajudar a manter viva a chama.