domingo, 23 de dezembro de 2012

POLICIÁRIO 1116

Este nosso espaço cumpriu durante muitos anos, sobretudo enquanto o nosso confrade Lima Rodrigues foi provedor do Policiário, a tradição de publicar um conto de Natal.
Depois, por motivos vários, foi-se perdendo o hábito.
O conto de Natal, enquanto instituição que nos habituámos a ver aqui, nada tinha a ver com questões religiosas, ao contrário do que alvitravam certas vozes, tanto mais que aquilo que aqui celebrávamos ia muito para além desse aspecto algo redutor, antes definia um momento em que olhávamos um pouco mais profundamente para as nossas relações com os outros. Digamos que a época natalícia, pelas características que lhe foram sendo dadas, nos oferecia a boleia necessária para olharmos para os nossos iguais e reforçarmos uma vertente de solidariedade e amizade.
Nesse sentido, o conto de Natal trazia-nos um olhar mais acutilante, mais despoluído sobre aquilo que se passava à nossa volta, fazendo-nos desligar, por alguns momentos, daquilo que era e é a razão da nossa secção: o crime e o seu combate.
Vamos publicar um problema de um confrade que já nos deixou, Procurador Incógnito, porque fala da véspera de Natal, algures pelo Chile e porque nos deixa um rasto de mentiras para descobrirmos:

MENTIRAS
Autor: Procurador Incógnito

Já não via o pai há muitos anos e este nunca demonstrara grande interesse no que se passava por aqueles lados. Invariavelmente, vinha a argumentação do pai: “Não me importava muito porque sabia que estavas em boas mãos com a tua mãe…” Não acreditava, mas o que é que podia fazer? Crescera sem pai e sem o desejo muito evidente de o vir a ter por perto. Podia dizer, mesmo, que lhe era indiferente. Só que, depois de tantos anos, eis que ele aparecia na sua vida e, sinceramente, não sabia como lidar com a situação. Ignorá-lo? Hostilizá-lo?
A mãe lançara o aviso para que não acreditasse em tudo o que ele dissesse, porque mentia com uma facilidade impressionante e com a convicção própria de quem estava seguro do que dizia…
“Não chega olhá-lo nos olhos porque até assim é capaz de mentir e jurar…”
“Sabes, filho, a vida nem sempre é como a queremos viver… Há momentos em que temos de tomar decisões e abrir mão de muitas convicções… Também eu gostava de ter estado contigo e acompanhar o teu crescimento, mas tive de ir para a América do Sul, por onde andei anos a fio, em expedições, mas sempre contigo nos meus pensamentos…
“Lembro-me de estar numa véspera de Natal, algures pelo Chile a contemplar a Lua e, ao ver nela a tua inicial, recordar os momentos que passei contigo, eras tu ainda um bebé… Dias depois, em plena passagem de ano, naquela bola enorme, luminosa, revia a tua cara bolachuda, redonda e sorridente… É mesmo isso, nunca te esqueci, só não tinha muito tempo nem oportunidade para te escrever, entendes? Andei por sítios nunca visitados por brancos, bem no centro da Amazónia, visitei tribos desconhecidas até então e recordo em particular uma aldeia praticamente inacessível, em que comi com o chefe da tribo, falei-lhe de muitas das coisas que eles nunca viram e ouvi da sua boca muitas histórias sobre a sua vida, família e tribo… Experiência única, ser o primeiro ser exterior a falar com eles, já imaginaste? E outra vez em que me despedi da vida porque me perdi e andei dias e dias sozinho por montes e vales nos Andes, sem encontrar vivalma, caminhando de noite para me poder proteger do sol e me orientar pela estrela polar, uma estrela que me parecia ter seis pontas e que logo me recordava o teu nome, que era a minha única referência e me serviu para encontrar uma aldeia mais a norte e ali encontrar assistência e apoio… Também nessa altura me lembrei de ti e foste a razão da força que me tirou de lá… Ainda estive à porta de uma estação de correios, na Bolívia, no dia de um dos teus aniversários, decidido a enviar-te uma mensagem, um telegrama, que telefone era coisa que por lá não havia, mas não pude mandar-te nada porque estava fechada por ser feriado… É o que dá nascer no dia da implantação da República. Eu bem tinha dito à tua mãe que era melhor registar-te a 4 ou a 6, mas ela disse que se nasceste a 5 de Outubro, era a 5 de Outubro que eras registado… Ainda havemos de partir à aventura para aquele mundo espectacular, vais ver…”
Francamente, ficara com a certeza de que a mãe o alertara para o perigo das suas mentiras apenas por despeito, mas agora mudara de opinião e achava que o pai era, de facto, um grande mentiroso, ainda que trapalhão…

Solução de “MENTIRAS”

Foram muitas as mentiras que o nosso pai desnaturado disse para se desculpar por não ligar nada ao filho:
Refere que andou dias e dias sozinho pelas montanhas dos Andes, como se isso fosse tão fácil como passear-se no Rossio, em Lisboa. As temperaturas baixíssimas, sobretudo de noite, os temporais e as próprias dificuldades de acesso jamais lhe permitiriam andar como diz e muito menos sem um guia especializado e competente.
Os Andes ficam na América do Sul, ou seja, abaixo da linha do Equador. Por isso, nunca ele poderia orientar-se pela Estrela Polar que indica o norte e apenas é visível no hemisfério norte.
Na passagem do ano, refere que a Lua era uma grande bola, pelo que estava em fase de lua cheia e fazia-lhe recordar a cara bolachuda do filho. Isso quer dizer que por alturas do Natal a Lua estaria a crescer e portanto em fase de quarto crescente, o que ele associa ao nome do filho. Tudo estaria bem se ele não falasse da Estrela de David, a estrela de seis pontas, revelando que o miúdo se chamava David; a Lua não lhe podia recordar o nome do filho, porque no hemisfério sul a Lua não é “mentirosa”: em quarto crescente aparece como um “C” e em quarto minguante como um “D”. É precisamente ao contrário do que nós aqui vemos.
Andou por florestas nunca visitadas por brancos na Amazónia, onde conheceu tribos que nunca viram ninguém exterior a eles. Mas a verdade é que o pai da história lhes contou e ouviu histórias. Em que língua e por que forma, ninguém sabe e ele não diz. Nunca poderia ter essa familiaridade e entender-se assim tão fácil e amigavelmente com tribos desconhecidas.
Diz que bem tentou telefonar ao filho no dia dos anos, mas o azar bateu-lhe à porta porque não havia telefone numa estação dos correios – como se isso fosse possível, e ainda por cima por ser dia 5 de Outubro, feriado em Portugal por se comemorar a implantação da República. Só que a história passava-se na Bolívia e não em Portugal e lá não se comemora nada nessa data.

BOM NATAL
Para todos os nossos confrades, leitores e “detectives”, ficam os votos de um Feliz Natal!

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